à° coisa de maluco
26/02/2021
Lembro dos bancos da faculdade de Direito, quando o professor de lógica jurídica anunciou para a próxima aula: “ensinarei a vocês a suprema lei da lógica”.
Uma semana de espera. Inicialmente ficou a impressão de logro. A passagem do tempo, contudo, fez com que a compreensão do ensinamento o mostrasse mais profundo do que pareceu, há mais de 20 anos, nos bancos da faculdade.
“Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa.”
Essa lei parece não estar em vigência, nem no STF nem no Congresso Nacional. Nem nas redes sociais.
O deputado federal Daniel Silveira gravou um vídeo que conseguiu ser mais polêmico do que pênalti aos 43 do segundo tempo entre Corinthians e Palmeiras.
Ameaça ao estado democrático de direito ou crime contra a segurança nacional, por mais que se tente empurrar algumas interpretações, não parece haver.
Boquirroto, de fato, passou dos limites e falou mais do que devia.
Crime, contudo, não parece ter cometido. A não ser, óbvio, crime de opinião.
E pela sua opinião, só por ela, foi preso. E por sua opinião, só por ela, foi mantido preso pelo pleno do STF. Não bastasse, por sua opinião, só por ela, o Congresso ratificou a prisão.
Uma coisa, preste-se muita atenção, uma coisa é o discurso do deputado.
Outra coisa, muito diferente, é o fundamento da prisão e o fundamento da manutenção da prisão pelo Congresso Nacional.
Se crime cometeu, foi crime contra honra de alguns Ministros do STF que teriam a chance de processá-lo, pessoalmente, se assim o desejassem.
Mas cabe a eles a interpretação da Constituição, e a interpretaram de forma a determinar a prisão do deputado.
Não houve prisão de Flor de Liz, a deputada acusada de matar o marido, ex-filho. Nem houve prisão de deputado pego com considerável volume de dinheiro em espécie, cuja origem até agora não se sabe ao certo.
Mas o deputado que expressou sua opinião foi preso. Isso, por si só, já causa um certo desassossego interno em quem usa a massa cinzenta para mais do que separar as orelhas.
Ser ruim a opinião do deputado é OUTRA COISA. Só pra constar, não concordamos com ela.
Mas ele tem, diria Voltaire, o direito de expressá-la. A Constituição, inclusive, assegura-lhe absoluta imunidade.
Pela Constituição, somente poderia o deputado ser julgado por quebra de decoro, por seus pares.
Aí que a coisa toma cores interessantíssimas. Por um lado a votação de 364 votos para manutenção da prisão foi dada, em sua maioria, como vingança privada.
Deputados de esquerda falaram sobre o “golpe” sofrido pela ex-presidente Dilma, sobre o acusado haver quebrado uma placa com o nome de uma vereadora do Rio de Janeiro, sobre desavenças ideológicas. Isso é UMA COISA.
OUTRA COISA seria analisar a questão principal: um deputado tem imunidade parlamentar ou não? Um ministro do STF pode mandar prender deputado antes mesmo de uma acusação formal?
A coisa toma cores de insanidade mental quando boa parte dos deputados que votaram pela manutenção da prisão do colega mencionaram que ele deveria não só ficar preso como perder o mandato por haver, supostamente, apoiado o Ato Institucional número 5, que recrudesceu o período de governo militar na década de 1960.
Quem conhece a história sabe que naqueles tempos, aparentemente menos trevosos que os atuais, o então deputado federal Marcio Moreira Alves teceu duro discurso convocando as massas a não comparecer aos desfiles de comemoração do 7 de setembro. Referiu-se ao Exército como “valhacouto de torturadores”. E vejam só: em tempos em que havia bipartidarismo, até os deputados da ARENA, partido de sustentação do governo militar, votaram de forma contrária a que o deputado fosse processado (não preso, apenas processado). Associado a uma passeata no Rio de Janeiro, o caso bastou aos militares e o Ato Institucional número 5 foi baixado pelo presidente Costa e Silva, chefe do Poder Executivo. O Congresso Nacional foi fechado e liberdades civis suspensas.
Aí a coisa vai ficando interessante. O deputado Daniel Silveira, em sua fala, defendeu que, naquele momento histórico, o Ato Institucional número 5 teve, digamos assim, efeito positivo, necessário ou mesmo benéfico.
A partir daí a confusão lógica é tamanha que a um observador razoável a coisa parece sair de um asilo de lunáticos.
O deputado que defendeu a supressão de liberdades naquele período, pelo Congresso não permitir que um de seus membros fosse processado (não preso, processado), passou a defender o direito do Congresso não permitir que ele continuasse preso.
Paradoxo à parte, os deputados de esquerda passaram a defender que o deputado Daniel Silveira continuasse preso, mesmo o STF tendo determinado sua prisão de forma que qualquer estudante de Direito Constitucional entenderia como contrária à Constituição.
Enquanto os deputados de direita defenderam o regime democrático e constitucional, e a liberdade civil e de opinião do deputado Daniel Silveira, os deputados de esquerda defenderam a interferência entre os poderes e a violação da independência dos deputados de forma que fariam corar qualquer um de seus pares dos anos 1960.
Mas se fosse só isso, a coisa até que poderia terminar em um samba-enredo de uma escola de samba qualquer em anos vindouros, quando o evento voltar a acontecer.
O STF, agora (e isso será reconhecido em anos vindouros, ao término desse período trevoso que vivemos), quebrou a ordem constitucional. Violou direito de opinião. Causou uma prisão absolutamente inconstitucional (o futuro dirá).
E terminamos assim: quem deveria julgar com imparcialidade usa a Constituição para punir desafeto, a esquerda defende o abuso e a direita clama por direitos civis.
Daniel Silveira foi julgado por pessoas que ele ofendeu. Foram acusadores e são juízes da causa. Sendo a Corte mais alta do país, tecnicamente ele sequer tem a quem recorrer.
Célebre frase de Tim Maia:
“Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita.”
Quem sair por último do hospício, apague a luz.
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